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segunda-feira, 5 de março de 2018

TERIA SIDO UM ANO PERFEITO SE...

A 90ª edição da premiação mais popular do cinema foi, em comparação com os anos anteriores, uma das melhores por um ponto de vista bem amplo. Conseguiu entreter como se deve ao ser leve, crítica, atual, emocionante, engraçada e imprevisível, como há muito não era e como a audiência realmente gosta que seja. Foi uma daquelas raras vezes que o espectador antenado realmente pode ter o prazer de torcer de verdade, ao invés de ficar naquela torcida falsa, de quem torce só porque tem preferência por um ou outro ser mais popular que os demais, tal como mostrou a pesquisa da TNT Brasil, em que mais de 50% dos votantes queriam Meryl Streep com vencedora do prêmio. Sinal óbvio de que essas pessoas sabiam dos filmes menos que Gloria Pires no Oscar 2016, e antes da meia noite já estariam roncando no sofa.

Jimmy Kimmel, que repete seu papel de apresentador pelo segundo ano consecutivo, pode não ter o mesmo carisma de Ellen DeGeneres, mas ele com certeza possui uma postura muito mais respeitosa do que demais que já pisaram naquele palco nos últimos 20 anos. Ele não é grosseiro como Seth MacFarlane, nem incisivo como John Stewart; não é ácido como Billy Cristal, e nem forçado como Chris Rock. Seu humor foi novamente equilibrado e pontual tal como sua presença, o que veio a calhar, já que foi um ano em que estava todo mundo muito tenso para ser provocado com pouco.

Nem por isso ele deixou de fazer o seu papel social. Criticou o necessário em momentos propícios, como aconteceu logo na abertura, ao descrever o Oscar como a única figura masculina mais respeitosa do cinema, já que ele está com as mãos onde se possa ver, em uma referência direta aos casos de assédio em Hollywood reportados em massa pelas mulheres no ano passado.

Assim como uma atriz disse, ainda no tapete vermelho, e que infelizmente não recordo seu nome (será que foi Hellen Mirren?), antes de todo o movimento feminista e racial acontecer em Hollywood, há uns cinco anos atrás, já era possível sentir que tudo isso estava chegando e que iria explodir em algum momento. A definição foi perfeita, porque nos últimos anos foi exatamente isso que aconteceu. Seja em 2016 com o Oscar "mais branco" da história, seja em 2015 com a "queima de sutiã" das mulheres que exigiram igualdade de gênero, 2018 foi realmente o grito de todos os lados, um grito que tentaram abrandar em 2017 e fingir que tudo havia entrado nos eixos, mas que depois dos escândalos de Harvey Weinstein e companhia, toda a bolha se rompeu.

Se a Academia compreendeu que ela própria precisava de mudanças, ou se ela fez isso esse ano apenas como uma medida paliativa assim como sempre costumou fazer, nós só iremos descobrir nos anos seguintes. De qualquer forma, foi um espetáculo à parte do que costuma ser, e mesmo que longo, mais por conta dos anunciantes do que por conta da cerimônia em si, foi redondo. Com momentos divertidos e outros emocionantes, tais como foram os números musicais e demais discursos extremamente expressivos por parte daqueles que apresentaram as categorias, também foi justo em várias delas ao premiar os mais que escolados Sam Rockwell e Allison Janney como coadjuvantes. O primeiro já vem de uma carreira muito sólida no cinema, e a segunda, uma atriz basicamente de televisão, que nunca havia sido indicada ao Oscar antes. Também teve os prêmios de Roteiro Original a Corra!, e de Roteiro Adaptado ao merecidíssimo Me Chame Pelo Seu Nome.

E falando em chamar... o que mais me chamou a atenção é que Kimmel, assim como DeGeneres, não fez da premiação uma piada dela mesma, como era comum demais apresentadores fazerem até a 85ª edição. Sempre critiquei essa postura da cerimônia e de seus apresentadores de fazerem do Oscar uma grande e jocosa piada como se fosse um premiação da MTV, e acharem que isso é entreter. Sempre acreditei que, se nem a própria premiação leva ela mesma a sério, é impossível que alguém leve.

E o tom esse ano foi completamente diferente, foi respeitoso sem deixar de ser crítico, e foi engraçado sem precisar ser ofensivo. Sabemos que o Oscar é uma premiação comercial e que muitas vezes não é justa, sabemos que tem seus erros e falhas, mas fazer disso um espetáculo auto-depreciativo do início ao fim era realmente ultrajante e desrespeitoso principalmente com a audiência. Quem assiste a cerimônia o faz porque gosta e também porque se importa, mas de repente ser obrigado a ouvir piadas de um apresentador qualquer sugerindo para ninguém levar o prêmio ou a cerimônia a sério, como muitas vezes aconteceu, definitivamente era chamar o espectador de idiota.

Felizmente é um teor que, como dito, realmente tem mudado nos últimos quatro anos, talvez pela morna recepção que MacFarlane teve em 2013, talvez pela constante queda de audiência de pessoas que realmente passaram a levar as piadas a sério e deixaram de se importar com aquilo. Até a postura dos convidados neste ano era diferente, era uma postura mais confiante, mais séria e presente. Não foi apenas uma vitrine, ou um lobby obrigatório. Percebia-se na ausência de padrões, como a calça de Emma Stone, ou das sandálias nas mãos de Maya Rudolph e Tiffany Haddish, que a revolução de transformar a cerimônia em um palco de discussões relevantes está tomando forma. 

Talvez também tenha sido por isso que, pela primeira vez, a premiação percebeu que a maior gafe nunca foi anunciar um prêmio errado, ou dar o prêmio por engano a outra pessoa, mas por nunca ter valorizado aqueles que mais valorizam o cenário e que são a verdadeira razão dele existir: nós mesmos.

Kimmel convocar atores para fazerem uma apresentação surpresa no cinema do outro lado da rua como uma forma de agradece-los e agradecer todos os demais do mundo por irem ao cinema foi uma das atitudes mais honrosas que a cerimonia resolveu ter com seus espectadores em todos seus 90 anos de existência. Foi emocionante ver o público no cinema de repente ver na própria sala apenas alguns daqueles que lhe dão razões para continuar indo ao cinema, e da mesma forma foi emocionante ver os atores na cerimônia agradecendo em coro todos aqueles que estavam no cinema. Kimmel simbolicamente inverteu a pirâmide, tirando da indústria a pretensão de que ela que domina a hierarquia. Foi um gesto pequeno, mas enorme em seu significado, igualmente trazendo humanidade e proximidade entre o ator e seu público, da mesma forma como DeGeneres também fez quando saiu distribuindo pizza aos atores, mostrando que não interessa quem seja, todo mundo é igual e todos fazemos coisas em comum, e todos nós dependemos um do outro para tudo isso existir. Não foi à toa que Gal Gadot, uma das que acompanhou Kimmel, esnobou a cerimônia ao bradar duas vezes que fazer aquilo estava melhor do que estar no auditório da premiação.

Pela primeira vez também tivemos duplas de atrizes para apresentarem tanto os prêmios de Melhor Ator, quanto de Melhor Atriz, quando a tradição é os vencedores do ano anterior apresentarem os prêmios do sexo oposto. Isso aconteceu pela ausência do ator Casey Affleck que, devido a acusações de assédio já acordados extra-judicialmente, preferiu não comparecer para evitar o stress de sua imagem e prováveis mal estares. Jane Fonda e Hellen Mirren premiaram Gary Oldman como Melhor Ator, enquanto Jodie Foster e Jennifer Lawrence premiaram Frances McDormand com seu segundo Oscar de Melhor Atriz na carreira, tão merecido quanto poderia ter sido se fosse Sally Hawkins.

Frances subiu ao palco um pouco incrédula e atormentada, numa categoria que realmente estava difícil prever uma vencedora, embora seu favoritismo existisse por ter abocanhado quase todos os prêmios da temporada. Mas como também é tradição da Academia preferir atores mais novos e populares do que os já veteranos, a probabilidade de Margot Robbie levar a estatueta era grande.

Quando subiu ao palco, Frances fez um discurso potente e inspirado, convocando todas as mulheres da platéia a se levantarem para serem vistas. Uma atitude empoderadora, que impôs um respeito há muito pedido, porém ignorado pela grande maioria delas. Foi uma situação um tanto constrangedora e incoerente, porque não havia uma mulher que não estivesse com um botton do movimento Time's Up pregado na roupa, movimento encabeçado por Reese Witherspoon e que visa fortalecer a imagem feminina na indústria. Mas apenas uma meia dúzia de atrizes se propuseram a ficar em pé, enquanto todas as demais permaneceram sentadas. Das que permaneceram sentadas, inclui-se Nicole Kidman, amiga de Witherspoon e uma das que mais se utilizaram do discurso feminista para promover sua série Big Little Lies (também produzida por ela e Witherspoon), uma situação um tanto irônica, veja bem.

Ao invés de aproveitarem o momento e apoiarem a voz de alguém que estava, de fato, representando-as no palco para milhões de espectadores no mundo, preferiram se mostrar recatadas. E com medo de amassarem a roupa, só deixaram claro que muita coisa ainda está errada, e que não é apenas a mentalidade masculina que tem que mudar no cinema e em Hollywood, mas a feminina também.

Parece que depois disso o show perdeu sua graça e seu tom, colocando nossos pés no chão e voltando pra realidade que a cerimônia sempre foi: previsível e grosseira. A previsibilidade voltou à tona quando Guilhermo Del Toro fez a tão amada dobradinha da noite, nas categorias de Melhor Diretor e Melhor Filme, remetendo àquela obviedade comercial que não se repetia mais com tanta frequência na premiação, mas ao mesmo tempo bastante controversa no caso porque o filme de Del Toro está sendo processado por plágio.

De qualquer forma, a ironia bate novamente ao perceber que, se não tivesse sido o Oscar de 2017, este seria o quarto Oscar consecutivo a um diretor Mexicano, mostrando que a Academia gosta mais deles do que seu conservadorismo aparentava, o que vai deixar Trump pisando alto de raiva.

Pode ter sido engraçado o deja-vu proposital de colocarem Warren Beatty e Faye Dunaway para reapresentarem o prêmio de Melhor Filme depois da gafe histórica do ano passado, em que Beatty anunciou o prêmio a La La Land quando, na verdade, o vencedor era Moonlight. Mas não foi nada engraçado quando o co-produtor J. Miles Dales foi fazer seu discurso logo em seguida ao de Del Toro, mas não apenas teve seu microfone cortado e tirado do palco como a orquestra entrou sem medo de acabar a cerimônia para ir embora.

Para ficar mais feio ainda, Kimmel se aproximou dele e falou: O QUE VOCÊ QUERIA DIZER PARA ELES (PLATÉIA)? ME FALA QUE EU DIGO.

Foi grosseiro, além de provar que, por mais que a Academia se esforce em mudar, a cultura do erro é tão presente que ela sempre irá tropeçar feio em algum momento.

Ao menos não foi uma edição forçada, como foi em 2016, que na falta de negros indicados, a Academia não apenas colocou Chris Rock como apresentador, como encheu o palco de afrodescendentes e outros de diferentes etnias, colocou discurso dos Obama e até jogaram Cheryl Isaacs no palco, a Presidente negra da Academia. Foi um ano triste pelo desespero da premiação em querer driblar as críticas e chacotas recebidas em massa pela imprensa.

Aprenderam a lição, e a 90ª edição só não foi perfeita porque, assim como um excelente filme de desfecho ruim, seu final arruinou tudo.

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