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terça-feira, 6 de março de 2018

O OUTRO LADO DA HISTÓRIA...

★★★★★★★★☆☆
Título: Eu, Tonya (I, Tonya)
Ano: 2017
Gênero: Comédia, Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Craig Gillespie
Elenco: Margot Robbie, Allison Janney, Sebastian Stan
País: Estados Unidos
Duração: 120 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
A história da patinadora Tonya Harding, sua ascensão entre as maiores patinadoras do mundo e o polêmico incidente envolvendo sua rival Nancy Kerrigan.

O QUE TENHO A DIZER...
Eu tinha 13 anos quando Nancy Kerrigan foi atacada.

O vídeo em que aparece chorando desesperadamente de dor depois do ataque, perguntando por quê fizeram aquilo, exatamente como o filme recriou, foi produto do sensacionalismo. Um momento chocante que marcou a memória de muita gente e cumpriu sua função tendenciosa de sensibilizar nações, reproduzida incansavelmente em todas as emissoras do mundo, em tudo quanto foi tipo de programa por semanas a fio todo momento que o nome de Kerrigan era citado, como que a nos lembrar constantemente como ela foi violentada e como merecia nossa infinita compaixão.

Não que não merecesse, mas foi essa persistente idéia que fortaleceu cada vez mais todo o antagonismo de Tonya na história.

As suspeitas de seu envolvimento no ataque já começaram a existir bem antes da final olímpica porque as investigações avançadas já ligavam o caso a seu ex-marido, levando muita gente, incluindo o próprio Comitê Olímpico, a questionar a participação da patinadora na competição.

Acredita-se que a grande imprensa e os meios de comunicação conseguiram influenciar no adiamento do julgamento de Tonya para depois das Olimpíadas para que a mídia, como um todo, se favorecesse com isso mais do que já estava.

O escândalo do ataque se transformou em uma grande história tipicamente americana, na qual Nancy Kerrigan se tornou a grande vítima e Tonya a maquiavélica vilã. A especulação e difamação dos jornais e tablóides foi tão grande que o último capítulo desta grande novela tinha obrigatoriamente que ter como cenário a grande final olímpica, seguida do julgamento. Na falta de Big Brother na época, era assim como a imprensa manipulava casos públicos como esse, transformando fatos em novelas reais, ganhando em troca aumento de audiência e ofertas de anunciantes.

A demonização de Tonya não entra com muita ênfase na narrativa, muito embora seja citada em um momento, quando a protagonista explica que quiseram fazer de Kerrigan a imagem da patinadora perfeita, a princesa do gelo.

E foi realmente assim.

A rivalidade que criaram entre ela e Kerrigan foi desumana, começando pela diferença social entre uma e outra, depois de educação e postura, do vestuário ao tipo de maquiagem. O peso de uma espantosa responsabilidade, criando uma cruel repercussão pública cujas protagonistas eram apenas duas garotas de 23 anos.

Tonya nunca foi delicada e sutil em suas apresentações. Ela era grosseirona e pesada, mas realizava os movimentos com perfeição técnica, inclusive no famoso Triple Axel, um movimento que, na época, apenas duas patinadoras conseguiam fazer, sendo Tonya uma delas, tamanha complexidade.

Esse tipo de rivalidade é algo que historicamente sabemos que a mídia recria de tempos em tempos entre duas personalidades para poder vender notícias, principalmente entre mulheres, inferiorizando-as e jogando-as umas contra as outras, manipulando o cenário como o seriado Feudo (Feud, 2017) mostrou muito bem na verídica história de Bette Davis e Joan Crawford.

O caso entre as patinadoras não foi diferente. Foi uma situação tão fora de proporção e psicologicamente devastadora que nos intervalos da escola eu via garotas tirando par ou ímpar para decidir qual Barbie seria a Nancy (a princesa) e qual seria Tonya (a bruxa). Era algo que na época parecia engraçado e normal, mas lembrando hoje percebo como foi assustador, principalmente depois de assistir ao filme.

O pior de tudo é que naquela época todo mundo comprou o que a mídia vendeu. Por conta disso, é um grande erro atribuir a Nancy Kerrigan o papel de única vítima da história, como ela mesma sempre afirmou, porque Tonya também foi por todos os lados, desde a violência doméstica que sofria da mãe e do ex-marido, até o assédio moral e psicológico por toda a mídia e imprensa. E o resto do mundo foi responsável por isso também a partir do momento que alguém escolheu um lado, tal como faziam as meninas com suas Barbies, pois foi exatamente isso que a indústria do entretenimento e o Comitê Olímpico quiseram, tanto que a apresentação final é, até hoje, uma das transmissões mais assistidas da história da CBS.

Logo no início, o filme deixa claro que é baseado em entrevistas reais feitas com Tonya Harding e Jeff Gilolly, livre de ironias e extremamente contraditório. Essa explicação, que por si só já é irônica e dá início ao tom cômico da narrativa, não é aleatória. Segundo a própria atriz Margot Robbie, todo mundo tem a sua opinião a respeito do que aconteceu, mas o que o filme tenta fazer é dar a oportunidade que Tonya nunca teve: de contar a sua versão, e não aquela que todo o espetáculo criou e vendeu como verdade.

Além do roteirista Steven Rogers construir uma narrativa que favoreça o ponto de vista de Tonya, ele também abusa do humor e da quebra da quarta parede. Isso ajuda na inclusão de parênteses que amarram melhor os fatos, aliviam o peso dramático, e fazem a cumplicidade entre a personagem e o espectador acontecer de forma mais rápida e forte. Há até inserções locutivas que inteligentemente são usadas como mais um elemento de narração, um pouco mais didático, mas ao mesmo tempo um tanto lúdico. Essa junção de diferentes elementos faz a jornada dramática da protagonista ser muito mais convincente e profundamente emocionante. Rogers também evita ao máximo incluir Kerrigan no desenvolvimento, e a personagem entra muda e sai calada em momentos muito pontuais e específicos, somente onde é necessário. Ele não faz isso porque queira favorecer a imagem de Tonya, mas por respeito, evitando distorções da realidade ou o maniqueísmo que imputaram nos fatos.

Quando Margot Robbie foi escalada para o papel, a primeira coisa que pensei na época foi: "ok, mais uma atriz que precisa de uma biografia para ganhar um Oscar". E me enganei duas vezes. Uma porque ela não ganhou o Oscar, embora merecesse caso 2018 não tivesse sido tão bem concorrido, e duas porque, assim como em Esquadrão Suicida (2017), Margot simplesmente domina cada centímetro de espaço em cena, sendo até arrepiante em algumas delas, como nos momentos antes da sequência da apresentação final, em que não existe nada mais no cenário além dela e a câmera, uma construção cênica frequente no filme e que Gillespie não tenta fazer disso momentos melodramáticos gratuitos, mas porque a interpretação da atriz realmente merecia ser destacada da mesma forma como Allison Janney foi, esta que atua numa força avassaladora, merecidamente dominando a temporada de premiações desse ano.

Sobrou espaço até para fazer uma autorreferência bastante engraçada à sua personagem Harlequina, de Esquadrão, pela qual ficou famosa.

E com um treinamento exaustivo, Margot realizou boa parte das cenas de patinação que são mescladas com as cenas com dublê de forma imperceptível graças à edição. Não é à toa que o filme também concorreu nesta categoria, porque é esse um dos fatores mais mágicos de todo o visual e que o faz manter o ritmo, junto à fotografia digna de nota e um figurino que reproduz com quase perfeição a década de 90.

Aliviar o peso dramático e intensificar o humor foi uma maneira interessante de também amenizar a responsabilidade de um assunto que foi explorado à exaustão e desgastou muita gente envolvida. Mas isso infelizmente acabou sacrificando detalhes da história que teriam justificado melhor esse ponto de vista mais indulgente, como a já dita ausência da manipulação midiática que existiu e que polarizou a opinião popular; ou da dissecação pública da vida de Tonya que levou a devastação da sua imagem, onde qualquer coisa era motivo para uma capa de jornal ou tablóide.

A relação dela com seu pai também foi pouquíssimo explorada. Se mostrou tão forte e importante no começo do longa, mas depois foi completamente esquecida, da mesma forma que esqueceram do fato de que Al Harding estava na arquibancada da apresentação olímpica apoiando sua filha, um detalhe fundamental desperdiçado na história que mostra que ela não passou por tudo sozinha, como o filme dá a entender.

Hoje a mídia reconhece a maneira brutal como lidaram com o assunto na época. A sentença do julgamento com a consequente perda permanente do direito de Tonya participar de competições ou se beneficiar profissionalmente da patinação de qualquer maneira que fosse, bem como ter sido banida de diversos reconhecimentos competitivos e olímpicos, como se nunca tivesse existido, ainda é motivo de estudo e controvérsia.

Ao longo dos anos Tonya incansavelmente relatou, inclusive em sua própria biografia, que ela nunca soube do ataque, embora tenha chegado a ouvir conversas entre Jeff, seu ex-marido, e Shawn, o lunático que trabalhou como seu guarda-costas, que jamais a levaram a entender que era sobre algum provável plano porque eram assuntos corriqueiros sobre rotina de treinos e competições. Até porque as investigações nunca conseguiram encontrar provas que realmente ligassem Tonya como a mandante do crime, como os acusados alegaram.

Gillespie conseguiu pegar um fato polêmico e controverso e fazer disso um filme biográfico respeitável que certamente foge de padrões narrativos típicos de filmes do gênero e que fizeram total diferença aqui como material de entretenimento, que além de divertir também emociona, como também oferece a oportunidade do espectador interessado conhecer o outro lado da história, que entre aquilo que pode ser verdade, mentira ou exagero narrativo, deve ser respeitado da mesma forma (ou até mais) que os 24 anos de história que favoreceram apenas o lado de Kerrigan.

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