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quarta-feira, 21 de março de 2018

LIBERDADE ACIMA DE TUDO...

★★★★★★★★☆☆
Título: Uma Mulher Fantástica (Una Mujer Fantástica)
Ano: 2017
Gênero: Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Sebastián Lelio
Elenco: Daniela Vega, Francisco Reyes
País: Chile, Alemanha, Espanha, Estados Unidos
Duração: 100 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Uma transexual terá de lidar com diversas outras dores além da perda repentina de seu namorado.

O QUE TENHO A DIZER...
Grande vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2018, sua vitória foi bastante comemorada, não por realmente se colocar como o melhor filme entre os finalistas, mas porque é um tema inédito a vencer em qualquer categoria da premiação. Pode ter sido um esquema da Academia em se promover como um grupo diversificado e que, ao contrário do que a História nos mostra, seja a favor da diversificação.

A vitória do filme veio em um momento muito delicado no cinema mundial, onde diversos grupos reivindicam seus diretos. Os negros exigindo maior espaço, as mulheres exigindo maior igualdade e, porque não, transgêneros também exigirem o respeito social e profissional que lhes são merecidos por direito humano e civil.

Sebastián Lelio é o mesmo diretor e roteirista responsável pelo grito empoderador da mulher independente que a todo instante caminha contra o preconceito e o machismo no filme Gloria (2013), o qual também concorreu ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2014, e agora está sendo refilmado para o público norte-americano pelo próprio diretor com Juliane Moore no elenco.

Portanto, não é de se espantar que sua sensibilidade sobre o tema seja refinada o suficiente ao ponto de outra vez desenvolver um grito empoderador e de liberdade relevantes aqui, e por uma personagem que igualmente caminha contra o preconceito, o machismo, a discriminação, o assédio, a violência e a todos os demais adjetivos desumanos que estão agregados nesta história. Não é à toa que Lelio materializa essa difícil batalha em uma das cenas mais simbólicas do filme, quando Marina (Daniela Vega), a grande heroína da história, caminha na rua contra uma rajada de vento, onde cada passo se torna mais difícil de sustentar, mas incapaz de impedí-la ou derrubá-la mesmo assim.

E é em cima dessa metáfora que todo o filme será construído, sendo a trajetória da protagonista baseada em histórias reais espalhadas pelo mundo, pois representa muitos casos similares ao dela em estados ou países que não amparam uniões estáveis como a dela, ou transgêneros como ela.

As situações por muitas vezes podem parecer exageradas no sentido de que, a partir do momento que Orlando (Franciso Reyes) morre, morre junto qualquer compaixão e respeito que exista, fazendo-a novamente encarar a bruta realidade de pessoas movidas por ódios injustificáveis, que ignoram completamente que a escolha individual de cada um deve ser respeitada independente de qual seja, levando-a a uma sucessão de conflitos desnecessários que a impedem de prosseguir com sua vida com dignidade.

Essa hiperbolização das situações tem um propósito chocante deliberado para sentimos o peso maciço das dores e de como a integridade da personagem é constantemente atacada e testada por puro sadismo e ignorância. O luto de Marina sequer é respeitado, além dela ser tratada como uma criminosa, responsabilizada não apenas pela morte de Orlando, como também pelas escolhas e infelicidades dos outros. É assim como faz a ex-mulher do falecido, que não se conscientiza que Orlando a deixou por uma escolha dele. A revolta de Sonia (Aline Küppenheim) não é por ter sido trocada por outra mulher, mas ter sido substituída por uma transexual, ferindo sua feminilidade narcisista, notado quando ela deixa claro que considera Marina uma aberração.

De atitudes familiares estúpidas, como exigir a devolução do carro e do apartamento deixados por Orlando, das ameaças que Marina sofre de seu enteado em crise sexual, das ofensas gratuitas que ouve dos demais familiares, nada parece o bastante até ser proibida de comparecer no funeral, numa situação muito parecida com a história real do casal Shane e Tom, contada no documentário Bridegroom (2013), onde Shane foi igualmente impedido de comparecer no funeral de seu marido, e que volto a dizer, é uma situação mais comum do que se imagina.

O desamparo legal, social e familiar, o escárnio, o desrespeito e a violência sofrida por todos os lados só acontecem dessa forma por ela ainda ter seu nome de batismo na sua carteira e pela inabilidade da sociedade em ser pluralista e diversificada. A depredação psicológica e física que Marina constantemente sofre mostra uma realidade tão brutal e desumana difícil de engolir. Seu comportamento sempre pacífico e calado, e a consciência que tem de que responder aos ataques só daria mais razões para a continuidade do sofrimento é o que também nos dá o igual sentimento de impotência e vulnerabilidade que ela tem, mas ao mesmo tempo nos deixa mais claro que a luz do dia de como sua integridade, respeito e educação são maiores do que de qualquer outra pessoa.

Por muitas vezes nos deparamos com a personagem se olhando ao espelho. Não é ela se questionando se deveria ser diferente, mas sim, o que há de errado com as pessoas em não aceitá-la como é, já que diariamente ela aceita e respeita todas as outras que frequentam o restaurante onde trabalha, ou a casa de shows em que apresenta seus números de canto. E a conclusão é que a ignorância é a única responsável por impedir essa reciprocidade.

É um filme difícil, mas há uma beleza implícita em todo o drama da protagonista e, acima de tudo, uma mensagem motivadora forte de que todos nós devemos impor o respeito pelo nosso espaço a partir do momento que ele é invadido. E o que acontece com ela é uma invasão tão brutal que se assemelha a um estupro, seja quando é coagida a realizar um exame de corpo delito, seja quando é sequestrada por um grupo, um momento tão apavorante e aterrorizante que só podemos pensar o pior.

O semblante que carrega do fardo da batalha que trava diariamente contra os achismos e demandas sociais irrelevantes nos deixa evidente que a vida de Marina nunca foi um mar de rosas, e que não era necessário maiores motivos para ela ser uma pessoa tão retraída e apática como demonstra na maioria das vezes. É a pele que engrossa e a casca que endurece em um mundo que se mostra cada vez mais incapaz de diálogo e compreensão. Só assim para ela conseguir dar a reviravolta emocionante que consegue na história, como um grito de independência e, finalmente, a tão esperada liberdade.

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