Translate

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

WAKANDA PRA SEMPRE!

★★★★★★★★★☆
Título: Pantera Negra (Black Panther)
Ano: 2018
Gênero: Ação, Super Herói
Classificação: 12 anos
Direção: Ryan Coogler
Elenco: Chadwick Boseman, Lupita Nyong'o, Danai Gurira, Letitia Wright, Angela Bassett, Forest Whitaker, Michael B. Jordan, Daniel Kaluuya, Martin Freeman
País: Estados Unidos
Duração: 134min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Após a morte do seu pai em um atentado, o Príncipe de Wakanda se prepara para se tornar Rei e assim defender seu país e os interesses de seu povo, além do direito concedido pelos deuses de usufruir dos poderes de um Pantera Negra. Até aparecer um desconhecido para revindicar seu lugar no trono.

O QUE TENHO A DIZER...
Assim como Mulher Maravilha (2017) e Logan (2017), Pantera Negra surge em um ótimo momento para quebrar paradigmas no cinema de ação. Também é um importante produto que modifica consideravelmente a estética que a Marvel insistia em manter em suas produções, aquela de oferecer uma roupagem adulta, mas ter um conteúdo completamente infantil. Um modus operandi que foi ganhando cada vez mais força e espaço, filme após filme, desde quando seu universo cinematográfico começou a tomar forma lá em Homem de Ferro, de 2008. Um cenário que se tornou ainda mais preocupante depois da sua compra pela Disney, em 2009. Uma previsão correta que atingiu uma proporção insustentável na qual até mesmo os fãs, já saturados, não aguentam mais, sendo Thor: Ragnarok, o ápice desse exagero e um sinal vermelho de que as coisas precisam mudar com urgência.

O filme, dirigido e escrito por Ryan Coogler, é essa fonte de esperança porque consegue, de uma maneira bastante surpreendente, encontrar o meio termo agradável entre a seriedade que a DC/Warner um dia teve no norte de sua bússola que hoje está quebrada, com o fabuloso universo fantástico da Marvel que nunca deixou de existir e se renovar. Também se aproxima da consistência que as produções da parceria Marvel/Netflix renderam nos últimos três anos, roteiros bem lapidados e definitivamente com uma pegada muito mais amadurecida.

A infantilização de personagens e do roteiro finalmente desapareceram dessa vez, dando lugar até para um bom palavrão bem encaixado em um determinado momento que não é verbalizado para evitar que os maiores vilões da Marvel/Disney entrassem em ação: a censura etária. Gesticulado pela personagem Shuri (Letitia Wright) em alto e bom tom, para a grande maioria poderá significar nada além de um momento engraçado, mas para aqueles que acompanharam o consistente processo de infantilização que o gênero sofreu nos últimos anos irá enxergar como um sutil ato de rebeldia, tal como foi quando a moda encurtou em quatro dedos as barra dos vestidos no século XVIII. E acreditem, significa muita coisa nas atuais circunstâncias.

E ousadia é, em um ponto de vista geral, a melhor definição deste longa que vai contar a história do primeiro super herói africano e com poderes dos quadrinhos. Primeiro porque, como é notório, é o primeiro filme de grande orçamento a ser dirigido por um negro, bem como o primeiro filme do gênero com protagonista e elenco predominantemente negro (sem nem precisar de Morgan Freeman ou Denzel Washington pra isso), e finalmente Angela Bassett ocupando um lugar que facilmente poderiam ter enfiado Viola Davis. Ou seja, um filme que lembra a humanidade de que a fina nata de atores afroamericanos não gira em torno apenas do trio Freeman, Washington e Davis. Claro que ainda existem centenas de outros, mas trazer novas faces e talentos ao spotlight já é um grande passo.

E assim como li em algum lugar que não lembro onde, "ninguém saiu por aí dizendo que Capitão América foi um filme com elenco branco porque isso nunca foi necessário". Portanto, sim, para os ignorantes de plantão, Pantera Negra celebra a diversidade cultural e étnica da melhor forma que o cinema comercial poderia fazer, pois não estamos falando de um grupo culturalmente homogêneo, e muito menos de um filme que faça parte do padrão caucasiano que a indústria cinematográfica nunca fez questão de quebrar.

Criado por Stan Lee e Jack Kirby, em 1966, o personagem nada tem a ver com o grupo revolucionário e anti-segregacionista dos Panteras Negras, embora a coincidência de fato existiu porque ambos adotaram o mesmo nome em uma diferença de poucos meses (o grupo adotou o nome posteriormente ao lançamento do personagem). Stan Lee até tentou, a princípio, se distanciar dessa coincidência ao mudar o nome do personagem para Leopardo Negro, em 1972, explicando dentro da própria história, na edição nº119 de O Quarteto Fantástico, que o nome havia sido mudado porque um grupo político também o havia adotado, e também porque um Leopardo nada mais é que uma Pantera. Mas a mudança não teve sucesso, e lá foi o personagem novamente explicar o retorno do nome nove meses depois, na edição nº105 de Os Vingadores, dizendo: "Eu não queria que minhas crenças pessoais e heranças culturais fossem confundidas com planos políticos criados por outros (...) eu não sou um estereótipo, eu sou eu mesmo. Eu sou Pantera Negra".

O que ele quis dizer com isso é que, não é o nome quem faz a pessoa, mas suas atitudes frente ao mundo.

Embora os meios utilizados pelo personagem e pelo grupo político fossem diferentes, os fins e as intenções, em sua essência, eram os mesmos. Sem querer, o personagem se tornou um ícone sociopolítico nos quadrinhos e dos quadrinhos, além de uma referência à cultura afro-americana e descendente que não existia até então, pois o herói e seus companheiros defendiam suas origens, enalteciam suas culturas, fortaleciam sua independência e promoviam o respeito entre raças e gêneros. E é de tudo isso que o filme também irá tratar em sua história de maneira extremamente sutil nos diálogos e nas intenções dos personagens, mas extremamente consistente quando muitas metáforas são traduzidas e condensadas, não evitando momentos para críticas ao colonialismo e ao imperialismo e como isso sempre foi o responsável pela opressão do avanço de uma nação ou sociedade, como quando é dito a um agente da CIA em não se preocupar em utilizar um simulador de uma das naves da tropa aérea de Wakanda porque o sistema foi "americanizado" para facilitar; ou quando este próprio agente da CIA chega ferido na base de Wakanda, e Shuri (como sempre), enérgica, diz: "mais um americano para curar". O que, para um bom entendedor, serve como uma grande ironia à situação geral da África e da fictícia atuação dos Estados Unidos, além das maiores empresas farmacêuticas norte-americanas estarem estabelecidas lá por terem alta amostragem e baixo custo, numa descarada exploração da miséria.

Se tem uma coisa que roteiro não se permite é desenvolver discussões racistas que atualmente inflamam facilmente os grupos neo-conservadores que adoram discursos boçais, e que poderiam facilmente ter sido abordados caso os roteiristas tivessem ido para um caminho mais óbvio. Nem críticas sociais ou políticas direcionadas à cor estão presentes porque no fictício país de Wakanda isso não existe. É uma sociedade tão próspera e intelectualmente avançada que nunca foi influenciada por nenhuma outra nação. Mesmo que o filme seja inteiramente em inglês por uma questão de linguagem cinematográfica, o sotaque utilizado é originalmente africano, e em várias situações os diálogos são em línguas nativas, como a Xhosa, lingua banto nguni falada por mais de 19 milhões de pessoas e uma das mais complexas. Só há uma exceção em um único momento, no diálogo entre Erik (Michael B. Jordan) com uma curadora na sequência do museu, em que ele afirma que foi estranhado pelos seguranças desde o momento que havia entrado, sendo esta situação o máximo da visão mais simplista sobre o preconceito e discriminação que o roteiro chega perto. Mas é importante notar que isso acontece porque a situação não se passa em Wakanda, mas no Estados Unidos, ou seja: coesão e coerência com o tempo e espaço onde as situações ocorrem.

A seriedade do filme não se sustenta no senso comum, mas muito além disso. Ela vai lá nas suas fundações, resgatando os períodos coloniais e escravistas, do abuso das nações e suas intervenções, evitando culpar quem é consequência disso, mas culpando diretamente quem foi responsável e impondo que é função de quem vive o momento de iniciar a mudança. Não é à toa que o mesmo Erik é aquele que irá soltar a frase mais amarga de todas quando diz que, assim como seus ancestrais se jogaram dos navios negreiros ao mar para não viverem presos, ele prefere morrer a ser enjaulado.

O que é interessante frisar aqui é que, por mais que o filme tente criar uma situação maniqueísta pra facilitar os momentos narrativos, a verdade é que não existe quem seja do bem ou quem seja do mal. Como dito, existe coerência com o tempo e o espaço, e cada personagem, independente de quem seja, tem suas atitudes movidas pela cultura que o domina, e cada um está certo dentro do seu propósito. Por isso temos T'Challa (Chadwick Boseman) e Ulysses (Andy Serkis) como extremos, um criado na cultura protecionista e autossuficiente com filosofias socialistas, e o outro na cultura imperialista e expansionista fundamentada no capitalismo oligárquico. E entre um e outro temos Erik, perdido entre suas raízes africanas e aquilo que a América lhe prometeu. 

Mas bem vindo são os momentos de alívio cômico. Se por um lado as piadas de Shuri são as mais incisivamente críticas, por outro temos aquelas absolutamente inofensivas que, ao invés de serem jogadas aleatoriamente até o desgaste, aqui utilizam um tempo de comédia que hoje parece raro, situações por vezes absurdas que remetem aos filmes de ação escapitas dos anos 80, e inesperadas da mesma forma como foram muitas das bem inseridas piadas em Liga da Justiça (2017), como no momento em que o carro pilotado por Nakia (Lupita Nyong'o) e Okoye (Danai Gurira) é destruído, uma situação tão ridícula que se torna genuinamente engraçada justamente por ter sido inesperada, deixando a sala ainda em restos de gargalhada até momentos depois. E entre o escapismo e a ironia, esses alívios acontecem, como em outro momento em que Okoye se prepara para se infiltrar em um clube vestindo a mais horrenda peruca que a produção poderia ter lhe arranjado, mas tão bem encaixada em seu discurso que é impossível não compreender o momento como uma implícita crítica à obsessão de muitas mulheres afrodescendentes em se sujeitarem aos padrões alvejantes de beleza do que simplesmente assumirem sua naturalidade.

Sim, porque além de uma maravilhosa experiência de reverenciamento e referenciação à cultura africana e sua diversidade como nunca se viu nos filmes de ação e de heróis na História do cinema, que inclusive demandou uma extensa pesquisa por parte da Desenhista de Produção e da Figurinista, o filme é integralmente sustentado por personagens femininas consistentes e de significado empoderador tão importante quanto as amazonas demonstraram em Mulher-Maravilha, mas aqui respeitadas pela isonomia entre os gêneros, e não resultado de uma constante batalha para tentar reduzir o abismo entre comportamento masculino e feminino que a sociedade alimenta. Ter importado Danai Gurira da série The Walking Dead para as telas do cinema demorou. Finalmente encaixá-la em um grande blockbuster já havia passado da hora, uma oportunidade de expor seu talento que até o momento não havia saído dos limites da televisão.

A história não perde tempo contando a origem do personagem, do seu crescimento heróico até um grande ato final onde ele tem de impedir um poderoso inimigo de destruir o planeta, uma estética narrativa que a Marvel repetiu incansavelmente para introduzir as pessoas em seu universo e que hoje não só se mostra desnecessário como uma fórmula ultrapassada. Ao contrário disso, perde-se muito mais tempo para introduzir ao espectador porque Wakanda é o elo perdido da África, a El Dorado nunca encontrada. E em um espetáculo cultural, somos apresentados a esta nação fictícia tão próspera e humana, porque é disso que o enredo se baseia: nas motivações humanas de cada um. É um filme redondo, dividido basicamente em três atos bem construídos entre o drama e a ação, e se tem uma coisa que ele peca é ter sido distribuído em cópias 3D, que podem aumentar o senso de profundidade, mas sacrificam consistentemente a qualidade visual que, tão bem cuidada, foi desperdiçada numa tecnologia que nunca agregou nada.

Me lembro que quando a Marvel começou com sua Primeira Fase cinematográfica (já está na sua terceira e última do cronograma planejado em 2008), e os filmes de heróis brancos e americanos começaram a pipocar em todo lugar, muitos críticos escreveram matérias imensas sobre a relevância que Pantera Negra teria se fosse bem adaptado aos cinemas. Quase 10 anos depois finalmente ele tem seu filme solo. Pode ter demorado muito pra isso acontecer, mas nunca é tarde o bastante, já que o momento em que o filme é lançado não poderia ser o mais relevante, num momento quando as discussões sobre igualdades raciais e de gênero estão tomando proporções cada vez maiores no cinema, no entretenimento e na sociedade. O mais belo disso é que Ryan Coogler conseguiu definitivamente criar um produto respeitoso, consistente e delicado sobre isso, ao mesmo tempo que não esquece de entreter e fascinar.

Mas mesmo sendo um dos melhores filmes da Marvel (se não for o melhor até o momento), com um dos roteiros mais consistentes dentre as adaptações de quadrinhos, e demais quesitos técnicos de primeira, o filme tem encontrado a resistência de certos grupos, os mesmos neo-conservadores que não dispensam discursos vazios, como aqueles que dizem que "é incoerente afirmar que o filme celebra a diversidade quando o elenco é só de negros", ignorando que quando falamos de diversidade não necessariamente falamos sobre raça, mas sobre culturas, além dessas pessoas também ignorarem completamente a indústria na qual o filme está inserido.

Toda quebra de preconceitos é socialmente dolorosa para todos os lados, e pode parecer que não, mas o entretenimento tem uma influência inquestionável nisso. É ele quem dialoga diretamente com a massa, é sua função e obrigação favorecer a diversificação e o diálogo. Os críticos estavam certos quando escreveram sobre a necessidade de Pantera Negra ser adaptado. A relevância disso está se provando nas quebras de recorde, arrecadando mundialmente mais de US$400 milhões apenas em seu final de semana de estréia.

Pode ser apenas o primeiro filme, mas só fará sentido de fato quando deixar de ser o único.

Nenhum comentário:

Add to Flipboard Magazine.