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terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

TIMING PERFEITO...

★★★★★★★★☆
Título: Corra! (Get Out)
Ano: 2017
Gênero: Horror
Classificação: 16 anos
Direção: Jordan Peele
Elenco: Daniel Kaluuya, Allison Williams, Bradley Whitford, Catherine Keener
País: Japão, Estados Unidos
Duração: 104 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Depois de cinco meses de namoro, um afroamericano decide passar o final de semana na casa dos pais de sua namorada branca. Ao chegar lá percebe que por trás da extrema amabilidade de todos existe algo diferente que ele não consegue entender o que seja.

O QUE TENHO A DIZER...
Muito se falou de Corra! no ano passado, quando o filme estreou no Festival de Sundance, o qual, depois de ser distribuído pela Universal, arrecadou mundialmente mais de US$250 milhões, cinquenta vezes mais que seus custos de produção.

Isso não é uma coisa ruim, já que as expectativas do próprio diretor/roteirista/produtor, Jordan Peele, eram as mais pessimistas possíveis. Ele acreditava que os brancos não iriam ao cinema com medo de serem ofendidos pelos negros, enquanto os negros não apareceriam ao cinema por não quererem se sentar perto dos brancos enquanto o protagonista era vitimizado. É claro que nada disso aconteceu, e tanto negros e brancos lotaram os cinemas. No fim saíram todos de lá satisfeitos porque conseguiram assistir um filme de horror que se torna de fato um dos mais assustadores e bem executados dos últimos tempos, mas ao mesmo tempo chocados porque puderam identificar muito da própria realidade nele.

Quer dizer... é o que esperamos.

O fato é que, ignorando cores e raças, o resultado de tudo é um filme perturbador com teor extremamente crítico e sem medo de ser ofensivo e incisivo, oferecendo o que promete de maneira que os filmes de horror hoje em dia dificilmente conseguem fazer. Agora, dentro da abordagem que o diretor constrói, ele incomoda não apenas por tratar a relação entre brancos e negros de uma forma extremamente chocante tal como assistir a violência de 12 Anos de Escravidão seguido da vingança de Django em um único filme, mas porque quando deixamos de lado toda a sátira social que este filme de horror também é, é entristecedor perceber que a realidade é muito parecida com isso, de fato.

Em uma matéria sobre o filme escrita por Tari Ngangura em Março de 2017, ela descreveu como muitas vezes presenciou pessoas brancas e liberalistas expressarem suas ignorâncias da forma como os próprios personagens fazem durante a festa de confraternização que ocorre na casa dos Armitage, e como ela achou isso engraçado quando assistiu ao filme pela primeira vez no cinema. Não porque de fato era engraçado, mas porque os momentos constrangedores nos quais o protagonista é obrigado a se defender nada mais são do que representações do comportamento diário que ela mesma vivencia ainda em plena segunda década do século XXI. Enquanto os mesmos brancos liberalistas presentes na mesma sessão, segundo ela, davam risadas banais porque realmente achavam engraçado sem sequer perceberem que aquilo não era uma comédia, mas uma crítica ao próprio comportamento deles.

E por incrível que pareça - e até irônico isso - o filme concorreu ao Globo de Ouro 2018 de Melhor Filme e Melhor Ator na categoria Musical/Comédia. Não me pergunte por quê, já que ele não é uma comédia, sequer um musical. A única coisa que sei é que a dissertação da autora nunca fez tanto sentido depois disso.

Risadas de constrangimento de um lado para tornar a situação mais palatável, risadas alienadas de outro porque não são capazes de compreender o contexto abusivo. As cenas em questão, onde Chris (Daniel Kaluuya) é convenientemente tratado bem, mas visto com estranheza e enquadrado em situações extremamente hostis perante a sociedade de alta classe da pequena cidade, causa desconforto e espanto para aqueles que estão em conexão com o contexto da realidade.

E realmente, quantas vezes também não presenciei situações como essa, como observador mesmo, e não como vítima. Seja com pessoas negras perto ou ausentes, é o comportamento que mostra como a sociedade ainda permanece doente e ainda dá atenções a uma herança cultural escravista e preconceituosa sem qualquer fundamento. Desde aquelas pessoas que dizem não serem racistas, mas que toda vez que citam um negro dizem "pessoa de cor", passando o dedinho sobe a pele, até aquelas que não tem o menor pudor ao utilizar a batida frase "não sou racista, só não é minha preferência", justificativa que nada mais é do que uma versão "feia arrumadinha" para o racismo. Também temos aqueles que blindam-se por trás do discurso constitucional, já que não são racistas, apenas estão expressando sua livre opinião.

Certo. Gostaria, então, que um dia essas mesmas pessoas me definissem o que é racismo, na concepção delas.

O pior é que pessoas como essas acreditam estarem fazendo algo correto e inofensivo, sem perceberem que seus atos apenas perpetuam e fortalecem o pensamento discriminatório e segregador. É o mesmo que sua mãe disser "fulana é uma negra bonita", e você corrigí-la afirmando que o que ela disse tem conotação racista, porque caso ela fosse feia, ela sequer citaria a fulana, e caso fosse branca, a fulana não seria uma "branca bonita", mas apenas uma "fulana bonita". Mas sua mãe não iria entender a diferença, ou acharia que você estivesse exagerando no discurso politicamente correto, como (outra vez) tem sido o discurso de apoio de muitos brancos racistas ou pseudo-racistas por aí.

Situações complicadas, mas que Jordan Peele conseguiu transferir de diversas formas em seu filme cujo hype em torno de seu lançamento não foi por menos. Foi quase imediata a forma como a crítica o considerou como uma perturbadora discussão sobre como os negros ainda são tratados com diferença e violência. Além disso, também chegou a ser considerado por alguns como um filme com teor feminista branco, o que, de certa forma, realmente se encaixa dentro do propósito de existência e desenvolvimento da personagem Rose (Catherine Keener).

Muitas comparações surgiram, como alusões de personagens do filme a grupos segregacionistas ou escravistas, como na descrição dada pelo jornal The Guardian, afirmando que o filme mostra o poder construído pela ignorância liberal e a arrogância que isso permitiu a essas pessoas. Uma arrogância que faz o filme se desenvolver e se concluir da maneira como acontece.

Peele não reprova tantas teorias, comparações e alusões que seu filme tenha gerado. A única coisa que ele afirmou sobre tudo isso é que o filme é sobre a escravidão, e isso já é um tema perturbador por si só.

Mas talvez mais do que o próprio tema, o que realmente faz a atmosfera do filme ser tão obscura e carregada (e exatamente por isso, reflexiva) é a forma como o diretor desenvolve as cenas com atenção a pormenores desde o princípio. Ele, que veio da comédia e estrelava um programa de humor, afirmou que a comédia e o terror são muito parecidos, pois dependem de um timing perfeito. Se a cena não é construída em seu tempo exato, a piada/risada, ou o espanto/medo, se perdem. É por isso que comédia e terror são os gêneros considerados mais difíceis, porque demandam técnicas precisas, e a direção é precisa a todo instante sobre isso.

Utilizando como inspiração o filme As Esposas de Stepford (1975) (o qual ganhou o remake Mulheres Perfeitas, de 2004), seja na captura das ações, no uso do ambiente, da edição ou da trilha sonora, Peele prende a atenção do espectador com pouco, chocando-o à todo instante através do comportamento desumano e até mesmo da violência justificada, tirando dos atores o melhor e o pior deles a todo instante. Não é à toa que a atuação de Kaluuya foi abundantemente elogiada, ator que foi escolhido para o papel imediatamente após o teste, de tão perfeito que havia sido, segundo o diretor. Mas uma pena que demais do elenco não foram tão relembrados da mesma forma, como a performance arrepiante de Catherine Keener ou até mesmo de Allison Williams.

De qualquer forma, é um tanto complicado comentar sobre este filme depois de assistir Pantera Negra (2018). Enquanto o filme do herói da Marvel enaltece a cultura africana das mais variadas formas, desenvolvendo discussões sociais e políticas relevantes e positivas, deixando completamente de lado embates raciais superficiais e comuns, este filme de horror faz totalmente o inverso, nos mostrando o terrível lado do racismo em sua pior forma, se tornando uma grande metáfora sobre o comportamento mais primitivo e irracional.

O filme conseguiu 4 indicações ao Oscar, incluindo Melhor Filme, Diretor, Ator e Roteiro Original, um fato raro no gênero, sendo O Sexto Sentido (1999) último a conseguir tal feito em seis categorias, há dezoito anos atrás. E como dito, como um produto de horror, ele cumpre mais do que aquilo que promete, mesmo que em determinado momento se aproveite de pitadas de ficção científica como elemento narrativo para gerar um clímax ainda mais ameaçador que poderia facilmente ter ficado de fora, pois não agrega absolutamente nada na narrativa além de um par de surpresas bobas. Funcionam no momento e causam aquela surpresa típica de reviravoltas conclusivas, mas desnecessárias depois de um desenvolvimento tão consistente da trama principal, que choca propositalmente para que a realidade se torne mais clara e objetiva para aqueles que ainda vivem no afundados no chão, no mundo do esquecimento sobre o assunto.

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