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sábado, 24 de fevereiro de 2018

LITERAL E FIGURADO...

★★★★★★★★★☆
Título: Desventuras Em Série (A Series Of Unfortunate Events)
Ano: 2017
Gênero: Fantasia, Comédia, Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Vários
Elenco: Neil Patrick Harris, Patrick Warburton, Melina Weissman, Louis Hynes, Joan Cusack
País: Estados Unidos
Duração: 50 min.

SOBRE O QUE É O SERIADO?
Após a morte de seus pais, os irmãos Baudelaire são enviados ao seu parente mais próximo (de distância), o terrível e maléfico Conde Olaf.

O QUE TENHO A DIZER...
Para quem achava que Lemony Snicket, assim como os irmãos Grimm, era um senhor de algum século passado que escrevia contos juvenis no sótão de sua casa, e de repente foi descoberto postumamente neste século pelo público juvenil, vai estar redondamente enganado.

Snicket nada mais é que o pseudônimo do escritor estadunidense Daniel Handler, sendo também o personagem de um de seus livros e o narrador onipresente de Desventuras em Série, uma série de treze livros publicados entre 1999 e 2006, com mais de 65 milhões de cópias vendidas em todo o mundo.

Embora o sarcasmo de Snicket tente a todo momento desmotivar ou desencorajar o leitor de continuar a história, isso é ele brincando muito bem com a psicologia reversa, que tanto funciona entre os mais jovens. É proibindo que eles querem fazer; é dando a permissão que eles perdem o interesse. Baseado nesse comportamento, Snicket conquista o interesse de seu leitor, mesmo que ele, assim como o personagem Klaus, já saiba perfeitamente a diferença entre o literal e o figurado, dois sentidos presentes com constância e peso nos variados jogos de palavras que Handler gosta tanto de usar e explicados com a mesma frequência para esclarecer àqueles que ainda não sabem essa diferença. 

Ou seja, Snicket não apenas é didático para os mais jovens, como também tira sarro da ignorância dos mais adultos sem ser ofensivo. Sua narração tragicômica e apática, que por muitas vezes chega até a revelar o fim com antecipação - antes mesmo da história começar - engatilha a curiosidade do leitor em saber como tudo vai acontecer. Psicologia reversa, como dito.

O primeiro livro foi adaptado ao cinema em 2004 pelo diretor Brad Silberling. A princípio era para Tim Burton dirigí-lo e Johnny Depp interpretar o papel do maléfico Conde Olaf, mas ambos acabaram desistindo do projeto. Quando Silberling tomou a direção, ele tentou se manter o mais fiel possível às idéias iniciais de Burton porque acreditava que se adequavam demais ao surrealismo do livro, tanto que cogitou a possibilidade de manter Burton na produção. Mas ao invés de Burton, temos Barry Sonnenfeld, um diretor que se aproximou bastante do gótico e do humor negro "burtonista" com suas adaptações de A Família Adams e que produz não apenas o filme, como também a série, e só não dirigiu o filme por desavenças orçamentárias com o estúdio.

O filme contou com Jim Carrey no papel do Conde, numa época em que sua carreira claudicava. Era o início de sua ladeira abaixo para o quase esquecimento que se encontra hoje. Carrey pode ter lá seus defeitos e vícios de interpretação que beira o insuportável, mas é inegável seu talento. A infelicidade do ator foi ter se transformado em uma caricatura dele mesmo, se estereotipado em um estilo único que chamou a atenção de todos com O Máskara (1994), um personagem no qual ele vive sob a sombra até hoje. Mas em Desventuras é diferente. Embora ele mantenha o estilo caricato, e alguns dos mesmos vícios ainda estejam presentes, a sensação de que ele tenta se distanciar de sua própria imagem é muito nítida. Simplesmente esquecemos que é Carrey por debaixo da maquiagem. A elasticidade que ele tem para desenvolver a comédia física de seus personagens sempre foi um de seus maiores talentos, coisa que ele usa nos momentos certos neste filme, numa versatilidade e fluência tão grande quanto nos disfarces de seu personagem.

Conde Olaf é descrito como um dos maiores piores atores que existe (descrições paradoxais como essa também são constantes na escrita de Handler), e Carrey consegue não apenas sustentar o filme como também personificar o personagem exatamente desta forma. O interessante aqui é que, embora ele seja um dos personagens principais, o filme não o coloca como grande centro de atenção, e por isso apreciamos o trabalho de Carrey por aquilo que ele faz, e não por aquilo que é.

Tentando ser o mais fiel possível ao livro, o filme peca em alguns aspectos de seu desenvolvimento, numa série de acontecimentos e um número muito grande de personagens que chega a ser um tanto atordoante para apenas uma hora e meia.

É aí que o seriado entra de maneira até glamurosa.

Carimbado pela Netflix, a primeira temporada da série, com 8 episódios, é essencialmente uma versão extendida do próprio filme em todos os aspectos, mas com um melhor espaço e aproveitamento de tempo para se desenvolver de forma muito mais detalhada os pormenores que no filme não couberam, tudo numa narrativa mais completa e que preenche buracos que o filme deixou.

Sonnenfeld agora também dirige alguns episódios, e o próprio autor do livro também é o roteirista e produtor. Ou seja, para ser mais fiel que os livros, impossível. Até a atriz escolhida para interpretar Violet tem uma similaridade até espantosa com a hoje-não-mais-garotinha Emily Browning, da adaptação cinematográfica. Mas os personagens de Handler são tão ricos e detalhados que, assim como uma boa música, oferecem material suficiente para terem as mais diferentes interpretações sem perderem suas essências.

É exatamente aí que os novos atores escolhidos para cada um dos personagens que surgem durante a incrível jornada dos Baudelaires se torna um diferencial, como é o caso de K. Tood Freeman no papel do Sr. Poe, ou Joan Cusack (que já trabalhou com Sonnefeld antes) fazendo uma bem vinda participação no papel da Juíza Strauss. Asif Mandvi como Tio Monty, ou a volta de Catherine O'Hara na história, mas dessa vez no papel de megera Dra. Orwell (ela havia feito o papel da Juíza Strauss no filme).

É emocionante e um tanto nostálgico ver Sonnenfeld de volta a um universo no qual ele domina tão bem, trazendo consigo pessoas que ele confia para desenvolver um produto apaixonado. Um diretor que começou sua carreira dirigindo filmes pornográficos na década de 70, dos quais ele se lamenta profundamente, afirmando ter sido um dos períodos mais turbulentos da sua vida, e que de repente conseguiu traçar sua trajetoria em Hollywood a passos curtos e sólidos como cinematografista, e finalmente se tornando um dos mais cogitados diretores da sua época depois do sucesso de A Família Adams (1991) e sua continuação de 1993. Mas depois da série M.I.B - Homens de Preto, ele aos poucos foi desaparecendo do spotlight, se dedicando a projetos pequenos no cinema e TV. Hoje quase ninguém mais lembra quem é ele, e é observando a delicadeza e deliciosa fantasia com que ele conduz as histórias que definitivamente percebemos um talento subestimado e que estava fazendo falta.

A atmosfera fantasiosa vista na série e a ironia visual se mantém na mesma referência estrutural de Tim Burton, numa paleta de cores mais fria, mas muitas vezes se assemelhando de igual forma com o deslumbrante-falecido seriado Pushing Daisies (2007-2009), criado por Bryan Fuller, outro interessante material que também faz ode ao maravilhoso universo "burtonista". Não é por menos que Sonnenfeld também produziu este seriado, não sendo então uma mera questão de coincidência Desventuras ser similar em vários aspectos técnicos e estéticos com o seriado de Fuller, seja na fotografia ou no design de produção, ou até mesmo na narrativa despretensiosa com constantes quebras da quarta parede para acentuar o tom cômico e atenuar o gótico.

Proposital ou não, as referências às obras igualmente fantásticas de Wes Anderson ou Jean-Pierre Jeunet são notáveis. De Anderson a simetria e a sobreposição de planos, sempre tendo algo ao fundo para atrair a atenção do espectador sem ele perceber; de Jeunet o realismo mágico como as desventuras se concluem, se assemelhando muito a clássicos deste diretor francês, como Ladrão de Sonhos (The City Of Lost Children, 1995) e Uma Viagem Extraordinária (The Young And Prodigious T.S. Spivet, 2013).

Jim Carrey não repete o papel de Conde Olaf, mas em seu lugar entrou Neil Patrick Harris, que também produz alguns episódios, deixando mais evidente ainda o nível de comprometimento do elenco com o projeto. É inquestionável o talento do ator no papel, tão interessante quanto o trabalho desenvolvido por Carrey, e do qual muito ele preservou, diga-se de passagem. A diferença é que, enquanto Carrey carregou um pouco mais no humor, Neil fez o contrário, acentuando um pouco mais o tom sombrio, deixando-o mais assustador e maquiavélico. Uma mudança sutil e que fez uma enorme diferença, mas que ainda não conseguiu justificar, por exemplo, o único ato explicitamente violento de toda a história, que é quando Olaf defere um tapa no rosto de Klaus. Um momento que, na minha opinião, poderia ter sido deixado de fora tanto no filme, quanto no seriado, pois é chocante de maneira desnecessária, ferindo a fantasia juvenil que toda a atmosfera lúdica tanto da história, quanto da produção, criam.

Sabemos das intenções sórdidas de Olaf desde o princípio, sabemos que ele é um criminoso inescrupuloso, narcisista e ambicioso, e qualquer coisa entre o que ele é o que ele virá a fazer na intenção de roubar tudo o que restou dos Baudelaires a qualquer custo, se torna até pequeno e irrelevante, mas o tapa imputa uma quebra narrativa até chocante, porque é o único momento que não foi feito com nenhuma figura de linguagem, com nenhuma intenção de ser engraçado. Foi literal, e não figurado.

Todos os defeitos de Olaf são utilizados para construir o caos da sua caricatura decadente. É dele que vem o humor negro e o antagonismo de tanto brilhantismo presente na unidimensionalidade dos protagonistas. O tapa pode ter, no livro, a função narrativa de mostrar que o personagem nunca terá seu momento de redenção, e que sua maldade não é realmente uma brincadeira textual. Mas nas telas teria sido inesperado e mantido o humor negro, bem como sua essência, se o tapa, por exemplo, tivesse sido deferido acidentalmente e Conde Olaf não se desculpasse por isso, ao invés de ter sido um ato deliberado e que realmente ofende o espectador.

O autor e roteirista é extremamente generoso com o nível de maldade e oportunismo que existirá em torno do casal de irmãos, sua intenção é explicitamente mostrar como a tristeza não tem fim, mas a felicidade sim. Mas embora o destino dos Baudelaires seja de um nível trágico fora de proporções nas mãos de Handler, apesar de tudo ele está do lado das crianças, assim como Lemony Snicket também, e é isso que nos conforta como espectador. A relação dos adultos com as crianças são sempre de superioridade, desde sempre acreditar que tudo que elas dizem é mentira ou exagero, até mesmo desqualificarem as experiências que elas adquirem. Mas a personalidade de Klauss e Violet mantém uma positividade que não morre. Não é um otimismo amedrontador, como do personagem que conhecem na madeireira, mas simplesmente acreditarem que os meios difíceis justificarão o fim de maneira satisfatória.

Com tantas nuances, figuras de linguagem implícitas e explícitas, e uma linguagem visual fascinante, tudo é baseado na ironia visual com a verbal, como acontece na família de Mr. Poe, onde tudo é tão pequeno, inclusive a própria casa, que nada mais é do que o reflexo da personalidade de todos eles. E se o espectador não prestar atenção, não notará que ela é tão pequena que está quase esmagada entre dois grandes imóveis, e da mesma forma, a ironia que ela representa.

E desse jeito o seriado é construído, em um deleite visual constante, com momentos sinceros e outros um tanto surreais, num equilíbrio que entretém e igualmente fascina na sua simplicidade emocional.

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