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quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

MULHERES FAZEM A FORÇA...

★★★★★★★★★☆
Título: Big Little Lies
Ano: 2017
Gênero: Drama, Suspense, Mistério
Classificação: 16 anos
Direção: Jean-Marc Vallée
Elenco: Nicole Kidman, Reese Witherspoon, Shailene Woodley, Alexander Skarsgård, Adam Scott, Zoë Kravitz, James Tupper
País: Estados Unidos
Duração: 60 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
As histórias de três mulheres, de suas respectivas famílias, e da relação existente entre elas, são expostas após um controverso assassinato.

O QUE TENHO A DIZER...
Houve uma época em que David E. Kelley era o J.J. Abrams dos anos 90/00, sendo conhecido principalmente por suas séries com bases jurídicas, já que ele mesmo foi advogado, largando a carreira para construir a de produtor de TV. Criou sucessos premiados como Ally McBeall (1997-2002), The Practice (1997-2004) e Boston Legal (2004-2008), também tiveram os aclamados Chicago Hope (1994-2000), Boston Public (2000-2004) e alguns outros. Mas advogados e séries era o seu negócio e sua característica como criador e produtor. Naquela época parecia que Kelley não tinha freios, e acumulou em sua carreira um total de 11 Emmys, sendo o último recebido por Big Little Lies, sua última criação até o momento, baseada no livro homônimo de Liane Moriarty, com roteiro adaptado integralmente por ele.

Mesmo tendo uma outra série em destaque no Amazon Prime, com Goliath (2016-), Big Little Lies é o grande retorno de Kelley depois de alguns anos um tanto apagado. A popularidade e o sucesso da mini-série não só trouxe de volta um dos maiores produtores aos holofotes, mas também o tirou completamente da zona de conforto daquilo que se condicionou a fazer e produzir ao longo de duas décadas.

Ter um roteiro bem escrito, cheio de elementos dispersantes (mas sem ser confuso), uma direção efetiva e que consegue lidar com o elenco peso-pesado, além de uma história intrigante e que reflete de maneiras, ora subliminares, ora diretas, muito daquilo que é a nossa sociedade moderna, não são os únicos elementos que deram créditos, superexposição e superestimação à série. A guerra pelos direitos do livro entre Netflix e HBO botou lenha nessa fogueira, e a partir do momento que HBO ganhou a licitação, um grande selo de qualidade foi carimbado, principalmente em tempos de Game Of Thrones, um dos maiores sucessos do canal pago até então. Além disso, o elenco formado excepcionalmente por estrelas de diferentes grandezas como Nicole Kidman, Reese Witherspoon, Laura Dern, Shailene Woodley e Alexander Skarsgård, fortaleceu mais ainda a imagem de que Hollywood tem buscado cada vez mais a televisão para se expandir, e que o encaretamento do cinema tem feito astros e estrelas encontrarem aporto e desafio em produções que fujam do status quo das salas de projeção.

Além disso, Big Little Lies é uma das poucas produções com debates claramente feministas e empoderadores que atraiu não apenas a atenção do público feminino em massa, como também do masculino, o mais resistente a temas como esse, já que, além de um drama, também é uma série de suspense e mistério.

Cada uma das personagens principais abordará basicamente um tema específico, como a maternidade ultraprotetora de Madeleine (Reese Whiterpoon), a violência e submissão doméstica de Celeste (Nicole Kidman), os traumas e as dificuldades da maternidade solitária de Jane (Shailene Woodley), o sucesso e a referência empresarial de Renata (Laura Dern) e, mais coadjuvante, porém nem menos importante, a liberalidade de Boonie (Zoë Kravitz). Todas elas com diferentes narrativas, construções e desenvolvimentos, ao mesmo tempo que dividem outras poucas qualidades em comum, como a independência financeira, idéias mais progressistas e menos arbitrárias do que a sociedade em que vivem na pacata, bem sucedida, porém conservadora e hipócrita cidade de Monterey, na Califórnia.

O roteiro tem sua parte linear, mas constantemente interrompida por flashbacks confusos de um passado mais distante, que aos poucos vão fazendo sentido conforme os episódios avançam. E também flashbacks mais recentes e coesos de certos fatos momentâneos ocultados para aumentar o nível de surpresa de suas revelações. Longe de ser uma novidade, essa narrativa desconstruída é o elemento que mais tem sido usado na televisão nos últimos 10 anos para elevar o suspense e a apreensão, conquistando facilmente a atenção do espectador, fazendo-o cair como um pato no gancho que o segura para o próximo capítulo. Não é um elemento ruim, mas para quem já o conhece de outros seriados como Damages, Bloodline ou até no mais recente The Sinner, não verá nisso algo realmente atraente, pelo contrário, nem damos muito atenção porque já se tornou previsível para os familiarizados.

De qualquer forma, são as abordagens sociais inseridas no contexto que trazem um certo charme repulsivo nas situações. A maioria  sobre as heranças históricas do comportamento feminino e a adequação delas na sociedade moderna, e da relação individual e coletiva das mulheres em comunidade. Temas complexos que envolvem todo um ecossistema, e não são simplesmente questões de gênero, do tipo: "mulheres são fofoqueiras porque é parte de sua natureza"; ou "mulheres não perdoam porque é parte da personalidade delas"; ou "elas são do jeito que são por questões hormonais". Respostas simplistas para uma sociedade machista que historicamente condicionou cada uma delas a estereótipos que encontramos a todo momento, e a coletivamente se comportarem como se comportam.

É a partir do momento que cada uma dessas personagens desafia o meio em que vive e entra em conflito com suas próprias crenças e raízes sociais que a transformação começa a ocorrer entre elas e na relação que as personagens passam a desenvolver entre si. Mulheres que, a princípio, começam a transferir suas pessoais frustrações a seus filhos e famílias, ao invés de resolverem os problemas fundamentais que causam esses dilemas. Não resolvem não por inalibilidade, mas por medo do julgamento social, da exploração indevida da imagem imaculada de mulheres perfeitas cobrada pela sociedade e fora do ambiente doméstico.

Sim, quando analisamos a fundo, Big Little Lies é uma versão mais séria e centrada de Desperate Housewives, e Monterey não é nada diferente da fictícia Wisteria Lane. Dos depoimentos maldosos até o comportamento mais cínico e desprezível de pessoas que apenas conhecem as protagonistas superficialmente, tudo é, de fato, fundamentado em fofocas, como cantigas de escárnio ou maldizer. E conforme mais as conhecemos, mais enjoados ficamos com observações tão falaciosas dos outros sobre elas.

Mesmo em toda a plasticidade apresentada, existe uma naturalidade palpável na forma como a série é conduzida. Os méritos disso ocorrem por duas razões principais, a primeira pela série ser produzida em grande parte por mulheres, incluindo Kidman e Witherspoon. A segunda é a direção de Jean-Marc Vallée, o mesmo de Livre (2014) e Clube de Compras Dallas (2013), que não apenas deu liberdade de criação ao elenco, como também de movimento, abolindo uso de iluminação artificial para que não houvesse obstáculos entre o cenário e os atores, e para que a sensação de realismo fosse maior. E funciona.

Kidman, por mais que ainda tente manter a aparência mais perfeita possível, não tem vergonha de se expor em cenas que acabam sendo as mais fortes e chocantes. Felizmente as intervenções cosméticas se amenizaram e ela agora tem expressões faciais novamente. O mesmo sobre Witherspoon, que por trás da imagem fútil e mesquinha, se mostra uma das personagens mais fortes e intrigantes. E aos poucos é assim que as relações são construídas entre elas, pessoas que criaram vínculos com outras que possuem o mesmo sentimento de não se enquadrarem no padrão exigido, por mais que tentem se adequar a ele, descobrindo que existe muito mais na realidade do que a vã filosofia dos outros.

É uma série que, a princípio, não se sabe muito bem sobre o que é, sobre o que irá falar ou qual é seu objetivo. Não chega a ser dramática ao ponto de arrancar lágrimas e soluços, mas trata de temas complexos e bastante deprimentes. Os alívios cômicos estão lá, espalhados pelos episódios, bem como o suspense e o mistério desde o primeiro capítulo, que começa como em O Rebu (2014), com um crime ocorrido durante uma festa promovida para a alta sociedade, do qual não saberemos quem foi a vítima e muito menos quem foi o assassino, até o último momento do último capítulo. Inclusive, esse foi um dos grandes êxitos, já que a mídia em geral parece ter assinado um contrato de confidencialidade, revelando nada além do mínimo necessário para não estragar prováveis surpresas, embora muita coisa se torne bastante previsível depois de um certo ponto, e confesso que, no quarto capítulo eu já deduzi toda a resolução da história, com uns 95% de acerto.

Uma série boa e muito bem construída, com alguns errinhos de continuidade aqui e ali, mas nada criminoso. Mas com tantos elementos reutilizados de narrativas de outras produções, Big Little Lies funciona pela bela química resultante de tantas idéias particulares e um esforço coletivo para que o projeto desse certo de maneira visível e quase palpável. Pode figurar entre as melhores produções do ano sim, mas o lobby em cima dele tem ofuscado outras séries que merecem as maiores premiações do ano, mais do que aqui, como: Feud, The Sinner (por sinal, muito mais intrigante) e Fargo.

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